Possível prevenção da diabetes com uma dieta sem glúten
Tradução, anotações e comentários do artigo: Possible Prevention of Diabetes with a Gluten-Free Diet (https://doi.org/10.3390/nu10111746)
RESUMO
O glúten parece ser um determinante muito importante no diabetes tipo 1 (DT1) e diabetes tipo 2 (DT2). A ingestão de glúten, um componente importante do trigo, centeio e cevada, afeta a microbiota e aumenta a permeabilidade intestinal. Além disso, estudos demonstraram que os peptídeos do glúten, após cruzar a barreira intestinal, podem torná-lo um ambiente mais inflamatório. Não somente, os peptídeos do glúten entram no pâncreas, onde afetam a morfologia e podem induzir o estresse das células beta ao aumentar a secreção de insulina estimulada por glicose e palmitato.
Curiosamente, estudos em animais e um estudo em humanos demonstraram que uma dieta sem glúten durante a gravidez reduz o risco de diabetes tipo 1. Alguns estudos relacionaram a adoção de uma dieta sem glúten à redução da obesidade e do diabetes tipo 2 e sugeriram um papel na redução da resistência à leptina e à insulina e no aumento do volume das células beta.
Por que isso é bom? Porque as células beta do pâncreas são células endócrinas (relação hormonal) que produzem insulina, um hormônio que controla os níveis de glicose no sangue. Elas estão localizadas nas ilhotas de Langerhans do pâncreas, detectando os níveis de açúcar no sangue, além de estimular as células do corpo a extrair a glicose da corrente sanguínea, como também armazenar, liberar e produzir insulina.

Em células beta animais, os peptídeos do glúten induzem a secreção de insulina, induzindo o estresse, disfunção, perda e autoimunidade das células beta pancreáticas e, portanto, contribuir para os dois tipos principais de diabetes.
GLÚTEN
Acredita-se que o consumo de glúten afeta muitos aspectos da saúde humana e que contribua para a pandemia de diabetes; isso é significativo, uma vez que o número de pessoas que sofrem de diabetes quadruplicou desde 1980 para uma estimativa de 422 milhões em 2014.
O trigo, o centeio e a cevada contêm grandes quantidades de glúten em seu tecido de armazenamento de endosperma (um tecido vegetal de reserva que se encontra nas sementes de muitas plantas, fornecendo nutrientes para o embrião em desenvolvimento). Quimicamente, o glúten é classificado como uma prolamina, contendo gliadinas monoméricas e gluteninas poliméricas (proteínas de origem vegetal que se encontram em sementes de cereais). Os principais constituintes de aminoácidos do glúten são prolina, glutamina e aminoácidos hidrofóbicos, que tornam o glúten resistente à degradação completa por enzimas gástricas, pancreáticas e de borda em escova.
A proteína do tipo α-gliadina (fração da gliadina, uma proteína presente no glúten, que pode ser tóxica e desencadear reações imunológicas) contém alguns dos peptídeos mais tóxicos do glúten, conforme evidenciado por estudos in vitro, e seu efeito foi mapeado para domínios específicos na estrutura. A consequência dos peptídeos é diversa e inclui efeitos de permeação intestinal (a gliadina induz um aumento na permeabilidade intestinal e na liberação de zonulina - proteína que regula a permeabilidade intestinal), liberação de citocinas (proteínas produzidas por células imunitárias em resposta a antígenos) e citotóxicos.
GLÚTEN E DIABETES TIPO 1
O diabetes tipo 1 é iniciado quando as células T autorreativas destroem as células beta produtoras de insulina no pâncreas, levando à hipoinsulinemia e hiperglicemia. Um estudo recente em camundongos diabéticos não obesos descobriu que as fontes modernas de trigo são mais diabetogênicas do que as fontes antigas de trigo. Muitos fatores ambientais têm sido associados ao aumento da suscetibilidade ao diabetes tipo 1, incluindo estresse fisiológico, vacinas, toxinas, leite de vaca e glúten na dieta.
Um estudo em camundongos diabéticos não obesos demonstrou que uma dieta sem glúten ao longo da vida, em comparação com uma dieta padrão contendo glúten, reduziu a incidência de diabetes autoimune de 64% para 15%, embora a pontuação de insulite não tenha sido significativamente reduzida. Em outro estudo mais recente em camundongos diabéticos não obesos, observa-se que a incidência de diabetes autoimune poderia ser reduzida ainda mais, para 8%, juntamente com a redução da insulite na prole, mantendo as mães em uma dieta sem glúten exclusivamente durante a gravidez.
Não obstante, estudos mostraram que o risco de autoimunidade das ilhotas pancreáticas aumentou se o glúten fosse introduzido antes dos três meses de idade, em comparação com o recebimento apenas de leite materno durante esse período, ou a primeira exposição ao glúten entre os quatro e seis meses de idade.
Recentemente, foi publicado um estudo baseado na Coorte Nacional de Nascimentos Dinamarquesa, que demonstrou que a ingestão materna de quantidades baixas versus altas de glúten durante a gravidez reduziu o risco (2 vezes) de diabetes tipo 1 em seus filhos.
Em resumo, os estudos sugerem que uma dieta sem glúten pode ter o potencial de reduzir o risco de diabetes tipo 1. Além disso, a microbiota intestinal parece desempenhar um papel importante na patogênese do diabetes tipo 1, mas a causalidade ainda não está clara. Pacientes com diabetes tipo 1 apresentam uma permeabilidade intestinal aumentada, e mostram uma diminuição nas bactérias que mantêm a permeabilidade intestinal. Apesar da causalidade ainda não estar clara, a microbiota intestinal parece desempenhar um papel importante na patogênese do diabetes. Assim sendo, uma dieta sem glúten pode melhorar a microbiota intestinal e a permeabilidade, evitando que partículas alimentares como peptídeos de gliadina atravessem a barreira intestinal e reajam no pâncreas. Não somente, uma dieta sem glúten aumenta o número de bactérias Akkermansia (uma aliada para a saúde metabólica, intestinal e imunológica), entre outras alterações, e a quantidade de ácidos graxos de cadeia curta (AGCC), como o butirato (que diminui a permeabilidade intestinal, além de suprimir respostas inflamatórias).
Uma dieta sem glúten reduz o estresse das células beta ao reduzir a secreção de insulina. Isso pode preservar o número de ilhotas, reduzir a insulite e melhorar o diabetes tipo 1. Assim, os estudos sugerem que uma dieta sem glúten reduz a inflamação nos intestinos e no pâncreas, envolvendo muitos tipos de células do sistema imunológico. Curiosamente, estudos em humanos indicam que diabetes tipo 1 e doença celíaca são doenças comórbidas e compartilham os haplótipos geneticamente predisponentes HLA-DQ2/DQ8. Assim, pacientes com diabetes tipo 1 exibem sinais de doença celíaca, o que ressalta que as duas doenças estão associadas e indica que o glúten pode ser um fator ambiental comum.
A capacidade dos peptídeos de glúten de atravessar a barreira intestinal foi confirmada de forma independente. A proteína gliadina também parece atravessar a barreira intestinal em humanos, evidenciado por observações de gliadina no leite materno e no soro de mães saudáveis. Além disso, sabe-se que uma dieta contendo glúten aumenta a insulite em modelos animais com diabetes tipo 1 e, inclusive, aumenta o estresse celular inflamatório.
De modo curioso, camundongos diabéticos não obesos expostos a uma dieta sem glúten exclusivamente no útero apresentaram aumento no número de ilhotas durante a fase pré-diabética, além de redução da insulite e da incidência de diabetes autoimune. Dessa maneira, é provável que uma dieta sem glúten reduza a atividade inflamatória nas ilhotas pancreáticas e reduza a insulite.
GLÚTEN E DIABETES TIPO 2
O diabetes tipo 2 está associado à obesidade e espera-se que a incidência aumente entre 2010 e 2030. No geral, essa doença é resultado da resistência à insulina e da disfunção das células beta.
Embora a resistência à insulina esteja frequentemente presente em indivíduos obesos, inicialmente as suas células beta compensam aumentando a produção de insulina e massa. Porém, a longo prazo, ocorre disfunção das células beta, resultando em hiperglicemia e diabetes.
Ademais, além dos genes suscetíveis, os fatores ambientais são importantes para o desenvolvimento de diabetes tipo 2. Sendo assim, o ambiente intrauterino pode ser de especial importância, onde os pesticidas, agentes hormonais, padrões de alimentação e subnutrição são determinantes potenciais. Ainda mais, nutrição fetal e pós-natal precoce deficiente leva à resistência à insulina e à disfunção das células beta no adulto, o que, em combinação com os efeitos do envelhecimento e da obesidade, se manifesta na diabetes tipo 2.
Em um outro ângulo, é provável que a resistência à leptina está envolvida na patogênese da obesidade e, portanto, do diabetes tipo 2. A resistência à leptina foi hipotetizada como sendo o resultado de adaptação genética insuficiente a uma dieta baseada em cereais, já que os humanos começaram a consumir cereais há apenas 10.000 anos.
Aliás, a obesidade e a diabetes tipo 2 estão associadas à disbiose intestinal., onde os indivíduos obesos apresentam alterações na microbiota intestinal (↑filo Firmicutes e ↓filo Bacteroides ), aumentando a capacidade da microbiota de coletar energia e aumentar os estoques de gordura. Curiosamente, a estimulação da gliadina, a proteína do glúten, no tecido intestinal de camundongos e humanos aumentou a permeabilidade.Assim sendo, ingestão de glúten parece aumentar a permeabilidade intestinal e levar a uma microbiota intestinal associada à doença e, portanto, contribuir para diabetes tipo 2.
Estudos em modelos murinos de diabetes tipo 2 indicam que uma dieta sem glúten pode melhorar a função da barreira intestinal e levar a uma microbiota mais saudável, aliviando a doença ao reduzir a passagem de peptídeos inflamatórios de glúten, produtos bacterianos etc. Dessa forma, uma dieta sem glúten diminui a permeabilidade intestinal, evitando assim que partículas de alimentos, como a gliadina, atravessem a barreira intestinal e atinjam o tecido adiposo e o pâncreas. Isso, por sua vez, leva ao aumento da sensibilidade à insulina e à melhora da tolerância à glicose, que é ainda melhorada pela redução do estresse das células beta e pelo aumento do volume das células beta.
Uma alimentação a longo prazo de camundongos com uma dieta sem glúten aumentou o volume das células beta e melhorou a tolerância à glicose, o que pode ser resultado do repouso das células beta, pois o glúten potencializa a secreção de insulina estimulada por ácidos graxos. Além disso, os camundongos alimentados com uma dieta sem glúten por oito semanas tiveram concentrações reduzidas no soro das adipocinas pró-inflamatórias leptina e resistina e concentrações aumentadas da adipocina anti-inflamatória adiponectina, juntamente com peso corporal reduzido, reservas de gordura epididimal, glicemia de jejum e insulina.
Ainda por cima, o estudo da Pesquisa Nacional de Exame de Saúde e Nutrição (NHANES), que consiste em uma série de pesquisas transversais realizadas a cada dois anos, demonstrou maior lipoproteína de alta densidade (HDL), menor circunferência da cintura e perda de peso autorrelatada em pessoas em uma dieta sem glúten. Assim, os efeitos de uma dieta sem glúten indicam ter o potencial de reduzir a obesidade e o DT2. Além disso, outras evidências humanas incluem um estudo em crianças com transtorno do espectro autista em uma dieta sem glúten sem caseína versus uma dieta regular por três meses, mostrando menor peso corporal e índice de massa corporal.
Portanto, como resultado, sabe-se que excluir o glúten da dieta mediará a exclusão de outros fatores antidiabetogênicos potenciais. Em resumo, alguns estudos de intervenção mostraram que uma dieta sem glúten pode aliviar a obesidade e o diabetes tipo 2 em humanos. Desse modo, estudos de intervenção maiores que esclareçam o efeito de uma dieta sem glúten em pacientes com diabetes tipo 2 são necessários.